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terça-feira, 4 de agosto de 2015

O buraco de cada um

Há 11 anos, eu me preparava para fazer 30 anos. O estranho é que não sentia a tal crise dos 30 e forçava um desconforto que todo mundo vivia, menos eu. Para comemorar a balzaquiana clássica, ganhei um presente: fui selecionada para uma bolsa para tradutores no Collège des Traducteurs em Arles, França. Surpresa, emoção incomensurável, medo. Eu, que nunca havia saído do país, viajaria sozinha para a França, desceria em Paris, iria ao endereço do fomento à bolsa, sairia de lá com 1.500 euros na mão, pegaria um trem para Arles, na Provence, e de lá para várias cidades em volta, também um avião para Birmingham na Inglaterra partindo de Marseille, depois de volta, e de novo Paris... isso durante quase 40 dias. Sozinha. Sem smartphones, que não existiam na época, sem Facebook, que ainda estava engatinhando.
Lembro que a notícia da bolsa chegou em março como um supetão com a ordem de viajar ainda no mesmo ano. E fui de março a outubro vendo as coisas da viagem, comprando passagem, marcando hotel, sem parar pra pensar. Sim, sem pensar. Porque, se pensasse, não iria. Foi o que percebi ao descer no Charles de Gaulle, num dia frio de outono, e pensar que, se eu morresse ali, ninguém ia saber. Eu podia desaparecer, podia ser atropelada, assassinada, essas coisas que a gente pensa quando se vê sozinho em um lugar desconhecido. E eu estava a 10 mil quilômetros de casa.
Mas eu fui. Olhei para o meu medo, coloquei-lo de lado, mas à vista, para que eu pudesse vigiá-lo e não deixá-lo crescer, e fui. Recebo até hoje comentários de amigas do tipo "eu não teria ido", "como você teve coragem"... Eu fui. Eu disse adeus. Virei as costas, entrei no avião, com medo, com pavor, com meu francês remelento de anos sem prática (e de prática eu não tinha nada), mas fui. Afinal, não era meu sonho de infância conhecer a França? Como assim eu poderia deixar de vivê-lo por um medo bobo? Está certo que viajar era corriqueiro já. Mas não para mim. Que me sustentava sozinha ganhando um salário que não bancava as despesas da casa, que ralava 12 horas por dia e mais 24 no fim de semana para me estabelecer. Eu não tinha escolha. Era imperativo. A vida me dizia: vá. E eu fiz o que ela me mandou fazer. Eu disse adeus à pessoa que eu era e abracei a que eu me tornaria. Mais segura, com boas lembranças e muitos, muitos desejos.
Já se vão 11 anos. Demorei a voltar, somente depois de nove anos. Porque investi em mim. Fiz mestrado, comprei apartamento, mudei de trabalho, cresci como profissional, aprendi a beber, e a gostar [muito] disso, descobri outros gostos, comecei a selecionar o que ouvir e com quem falar, abri meus horizontes, abracei muitos e bem-vindos amigos, fiquei fissurada em sapatos, parei de me culpar por gostar de me arrumar e gastar dinheiro com isso, conheci homens legais e muitos imprestáveis (a maioria, infelizmente), admiti que ser mãe não é meu caminho, mesmo adorando crianças, e descobri que o casamento nunca foi a coisa mais importante na minha vida, mas algo imposto por uma sociedade hipócrita e machista, que ainda reserva às mulheres seu papel in door.
Mas o que ficou dessa viagem foi mais do que isso: foi aprender a tomar o caminho desconhecido. Assim, estabeleci uma regra para mim: se a vida me apresenta dois caminhos, um que eu já conheço e outro desconhecido, e se eu fico muito em dúvida sobre qual tomar, eu tomo o segundo. Não sem pesar os prós e os contras, mas a primeira análise passa a ser: o caminho que conheço me trará experiências que eu conheço. Se eu tomar o novo, então, a possibilidade é que viva coisas diferentes, não é? É um risco. Pode ser doloroso, pode haver tombos, mas, olha, é revelador. Revelador da pessoa que você é e da que você será no futuro.
Então, não tema acabar com aquele relacionamento que só o faz infeliz, porque você ama demais aquela pessoa. Mentira. Você não a ama. Você ama o fato de estar amando e se acomodou a isso. Porque, se fosse amor isso que acha que vive, não haveria infelicidade. Arrisque. Pegue seu amor e deixe-o disponível para alguém que realmente valha a pena e que o mereça. Porque o amor é seu para dar para quem quiser.
Se está infeliz no trabalho, pese todas as variáveis e procure outra coisa para fazer. Quem sabe em outra cidade? Com novos amigos, novo bairro, nova rotina?
Não tema sair de perto dos pais. Se eles o amam, vão querer que você ganhe o mundo. Se o querem grudado neles, são crianças que precisam crescer, e de repente é seu papel lhes ensinar isso. Porque, mesmo sendo cruel, a tendência é de que eles morram antes de você, e aí vai ficar aquele vazio do amor que se foi e da vida que não frutificou.
Abandone quem não quer saber da sua companhia. Se a pessoa quer ir, deixe que vá. Mas cuidado para não colocar outra no lugar para preencher o buraco que ela deixou. Isso vale para o amor, mas também para a amizade.
E, sobretudo, olhe para o seu "buraco". É uma frase estranha, mas nosso buraco (o furo da psicanálise, e me corrijam se eu estiver errada) é nossa falta. Sem ela, nós não desejamos, não buscamos. A falta vai continuar existindo. Por isso, conviva com ela. É mentira a crença atual de que podemos ter tudo. Não, não podemos. Porque, quando temos tudo, quando estamos plenos, é a morte.
Crie. Seu buraco é para isso. Ele vai lhe mostrar o caminho.
O meu está aqui. Eu olho para ele todos os dias, para não esquecer da sua existência.

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