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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Sobre nuvens e sonhos

Um dia, ela disse ao vento, o único que parecia ainda escutá-la, que estava cansada de sonhar. Sonhar e ter de desistir dos sonhos:
— Afinal, os sonhos são como nuvens. Uma hora as olhamos, e elas estão lá, mas basta nos desviarmos que elas se esfumaçam e viram outra coisa.
— Sim, os sonhos são como nuvens. Já reparou como um céu sem nuvens é límpido e claro? Quase se pode tocá-lo de tão presente. No entanto, já observou que um céu com belas nuvens brancas, em suas diversas formas, também é lindo? As nuvens trazem graça ao céu, modificam sua forma, sua luz, sua cor. As nuvens fazem parte do céu, apesar de nem sempre estarem presentes. E assim também são os sonhos. Por mais que se queira não mais sonhar, por mais que se queira manter o céu azul sem mácula alguma, em algum momento uma nuvem vai aparecer. E é nesse momento que a vida se modificará. Uma nuvem é um acontecimento, uma mudança de vida, um novo amor, ah, o amor. É o que faz a vida ficar diferente, é o que força você a se modificar. A nuvem é necessária, assim como o sonho. Na medida certa, ela emoldura o céu, assim como o sonho emoldura a vida. Só é preciso tomar cuidado, porque nuvens em excesso são sinal de tempestade. Elas impedem a visão do céu, oprimem, escurecem. Como os sonhos em excesso, que fazem com que nos fechemos em nós mesmos. É preciso equilíbrio.
— Mas as tempestades trazidas pelas nuvens são boas, elas limpam o céu. Eu adoro tempestades.
— Sim, você entendeu, moça. Quando seu céu se encher de tempestades, espere que elas passarão, e aí volte a sonhar e a realizar seus sonhos, passo a passo. E de vez em quando vire seu rosto para o céu para admirar seu azul infinito sem nuvens. Mas não as espante. Elas são a surpresa da vida.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Ausência

Acordou naquela manhã como fazia todo dia, depois de ele já ter se levantado e saído para o trabalho. Então, não estranhou sua ausência. Levantou-se, lavou-se, vestiu-se e tomou um café devagar, um café preto amargo, como gostava de fazer, para tirá-la da letargia do sono da noite. E saiu para mais um dia produtivo que só terminaria com o sol já ido para seu descanso.
Voltou para casa com o dia já escurecido e a encontrou vazia, como sempre. Ele saía antes e voltava depois, por isso não estranhou sua ausência. Tirou a roupa, tomou um banho e preparou algo para comer. Planejava terminar o livro que havia começado na semana passada. Enquanto isso, aguardaria sua chegada, quando então se sentariam à mesa e ele lhe contaria todos os problemas do dia – e nunca eram poucos. Mas esse momento não chegou.
A hora foi passando, a hora de ele chegar também passou junto. Pegou o celular, ele tocou a três metros de distância. Ele o havia esquecido em casa. Então, como não havia saída, esperou. Esperou no sofá, lendo seu livro, depois na cama, com a luz do abajur acesa a iluminar seu rosto preocupado e apreensivo. Até que adormeceu.
Acordou, então, na manhã seguinte como fazia todo dia, com a diferença de que sabia que ele não havia se levantado e saído. Não havia sinal nenhum de sua presença, de sua chegada com ela adormecida. Então, como era de seu temperamento, fez o que sempre fazia para tomar uma atitude: lavou-se, vestiu-se e tomou um café, desta vez não tão devagar, um café preto amargo, como gostava de fazer, para tirá-la da letargia do sono da noite. Ligou para os amigos em comum, para os amigos dele, para os parentes, para o trabalho. Teria perguntado ao cachorro, caso tivessem um. E saiu para um dia de buscas que só terminaria com o sol já ido para seu descanso: delegacias, hospitais, qualquer lugar que lhe viesse à mente. Sem sucesso, voltou para casa.
E foi assim nos próximos dias. A polícia fazia buscas, os amigos faziam buscas, ela também buscava, enquanto esperava. E pensava. E imaginava.
Angustiada, tentava adivinhá-lo perdido sem memória por aí, caído numa sarjeta ferido ou morto depois de um assalto, enfiado com uma amante num motel de quinta, qualquer fato, qualquer acontecimento, menos ou mais trágico.
E assim os dias foram passando. Os dias, as semanas, os meses... Ela olhava em casa. Nenhum sinal de sua ausência. Ao contrário, sua presença manifesta: as roupas no armário, o aparelho de barbear na pia do banheiro, os chinelos embaixo da cama, o celular esquecido (será?) na mesa de canto da sala, o livro lido pela metade, um fio de cabelo, um perfume que aos poucos se esvanecia.
Em alguns momentos ela chorava, em outros apenas sentia. Mas o choro, assim como o sentimento, ia diminuindo. Todos diziam que ele estava morto. Algo lhe dizia que apenas fora embora.
E assim passou-se o tempo. Ela, aos poucos, foi melhorando da tristeza. E mudou sua rotina. Como não havia mais como sentir a ausência em uma parte do dia, como não tinha mais a quem esperar à noite, ela se levantava, se lavava, se vestia, tomava um café não mais tão amargo, comia algo e saía para o dia. Nem sempre voltava para casa direto do trabalho. Às vezes encontrava amigos, às vezes ia ao cinema sozinha, às vezes passava em uma livraria ou tomava um café na cafeteria charmosa a que quase nunca ia.
Ela vivia.
E foi assim que, um belo dia, sem ela esperar, ou pensar, ou lembrar, ouviu a chave girar na porta. Ele entrou. Entrou como se nunca tivesse saído. Não sabia se usava as mesmas roupas, pois não o tinha visto sair da última vez, mas não via nele nada de diferente. Ele entrou e a olhou, e lhe disse que precisava lhe explicar o porquê da ausência.
Ela nada falou. Saiu de onde estava, foi até a escrivaninha da sala ao lado e pegou um bilhete. Um bilhete de despedida. Um bilhete dele para ela. “Amor, precisei partir. Precisava viver outras coisas diferentes da vida que levamos. Desculpe se não a levo comigo. Viva também outras coisas diferentes da vida que leva. Te abraço com carinho. Seu.”
Ele leu o bilhete e a olhou com olhos questionadores. “Mas... eu não escrevi isto. Não deixei nada escrito.” “Eu sei. Mas eu precisava justificar sua ausência. Precisava seguir. Ela já foi preenchida, não precisa mais me explicar por quê.” Ele a olhava ainda sem entender. “Eu vivi, como você viveu. Não há mais ausência. Porque não sinto mais falta de mim.”
E pediu que ele se fosse. Não o esperava mais. Aprendera, na dor da ausência, a saber que esta sempre existiria enquanto sentisse falta de si mesma. Não sentia mais falta de si mesma. Era feliz.

domingo, 3 de novembro de 2013

"Caminhante, não há caminho,/ se faz caminho ao caminhar"

Quando a vida toma um bom rumo e as coisas começam a entrar nos eixos, mas você insiste em se agarrar ao que lhe puxa para baixo, a culpa é de quem? Da vida, que insiste em colocar dificuldades em seu caminho, ou sua, que insiste em ver as dificuldades sem olhar para o que está acontecendo de bom? Uma coisa é certa, apesar de clichê: abrir a janela e olhar para fora quer dizer olhar para fora de si mesmo e ver o mundo de possibilidades que estão ali, à disposição. Isso não significa que as coisas virão facilmente. Você terá que dar um passo em direção a elas: abrir a porta e sair para o mundo ou, se for mais afoito, pular a janela e ir em busca de algo novo. Porque o limite do nosso desejo se estabelece no limite do desejo do outro, sendo esse outro uma pessoa ou um fato. Se os dois limites se intercambiarem, como a famosa imagem das duas alianças que se unem guardando dois inteiros, ótimo, vá em frente. Do contrário, recue alguns passos, olhe para um lado, olhe para o outro, e busque outra saída. Sempre há uma saída. O que acontece é que muitas vezes não a enxergamos, carregados que estamos de nossas tristezas, mágoas e dificuldades.
Siga em frente. Porque, como diz o poeta, "caminhante, não há caminho,/ se faz caminho ao caminhar"..

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sobre relacionar-se

Estou numa fase de jogar fora tudo o que é supérfluo e que só atravanca a vida, desde objetos e coisas até pessoas e sentimentos. Foi nessa que, esvaziando minha caixa de e-mails, que já passava de 5 mil, encontrei este pequeno texto guardado como rascunho. Lembro de quando o escrevi, há alguns anos. A ideia não mudou; pelo contrário, só se fortaleceu. Não admito, há muito tempo, nada diferente disto:

Continuo aprendendo que relacionamento, seja ele qual for, é sempre uma via de mão dupla. É troca, não uma anulação pessoal ou do outro. Que respeito e confiança são primordiais, e revelam se o que se sente é mesmo algo que valha a pena ou simplesmente sentimento de posse e carência. Que o outro não é o primeiro nem o último no mundo, e que, mesmo que doa, às vezes é melhor deixar ir, ou você mesmo virar as costas e partir em outra estrada. Que nada melhora com o tempo se já não for bom, e que quem gosta de você quer vê-lo feliz, não dentro de uma forma. Que a individualidade deve ser preservada. E que uma coroa é sempre uma gaiola ou uma corrente, mesmo sendo de ouro.

Eu sei, não é muito romântico. Mas quem disse que o romantismo nos faz felizes? Quer ser feliz? Aprenda a conviver sobretudo com o defeito do outro. Porque as qualidades, estas são bônus.
E se depois de tudo isso aquele que você ama for embora, lembre-se: é terrível, mas o outro tem todo o direito de não querer você. Simples assim. Não se descabele, pelo menos não por muito tempo.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Numa manhã de domingo

Acordara naquela manhã com uma sensação estranha. Teria sido apenas um sonho? Olhou à volta — tudo igual à noite anterior. O controle da TV jogado no canto do colchão, a cama desfeita, mas que lhe lembrava uma solidão que se estendia há algum tempo, a cortina meio entreaberta, deixando, agora que amanhecia, entrever a luminosidade do dia, enquanto na noite anterior revelava um facho da lua. Na cadeira perto da porta, a calça e a camisa que tirara antes de se deitar, um pouco bêbado do vinho que tomara. Mas nenhum sinal dela. Da moça com quem dormira. Sentiu seu cheiro, seu gosto, o toque da sua pele, alva e macia. Lembrava da sua língua na sua língua, do gosto do seu sexo, da maciez das suas coxas, do calor das suas pernas. Mas começava a achar que sonhara. Um sonho erótico como tantos outros que vinha tendo.
Levantou-se ainda inebriado, querendo voltar para aquele aconchego fumegante. Foi até o banheiro, lavou o rosto para tentar acordar de vez, até que da porta aberta enxergou a luminosidade do outro cômodo. Em cima da mesa, um papel chamou-lhe a atenção. Foi até ele. Apenas algumas palavras: "Estive aqui, estive com você, saí enquanto dormia. Foi um sonho que se tornou realidade. Não se esqueça de mim. L."
O desespero lhe tomou conta. Então não havia sido um sonho! Mas onde ela estava? Abriu a porta da sala, mas se deu conta de sua nudez, então voltou para ao menos vestir as calças. E então se mandou escada abaixo. Uma escada em caracol, que o deixava tonto enquanto a descia. Os degraus, poucos, que estava acostumado a descer e a subir todos os dias, pareciam agora caminhos intermináveis que não dariam em lugar algum. Finalmente, a porta da rua. Um lado, outro, nada. Somente a quase claridade de um dia que amanhecia. Ruas desertas. Orvalho da manhã. Solidão. Pôs-se então a andar, desolado. Não entendia como aquela letra, L, havia entrado e saído da sua vida assim, tão de repente e sem rastro. Apenas sensações. Nenhuma prova física — ou quase nenhuma.
Andou por uns minutos com as mãos no bolso da calça, sentindo frio por causa do dorso desnudo, até que chegou à praça ao lado de onde morava. Uma moça ali estava, sozinha, encostada na grade que cercava a área infantil. Seus cabelos castanhos caíam em cascata pelos ombros. No corpo, um vestido simples, em tom róseo, mas bem ajustado. Sapatos de salto baixo, nenhuma maquiagem. Não podia ser aquela moça. Não tinha lembrança dela. Então resolveu perguntar. Quem sabe? E chegou mais perto, até que uma brisa soprou e aquele cheiro, aquele cheiro da noite anterior invadiu suas narinas, seu corpo, suas veias. Era ela, novamente com todo o fascínio que havia sentido e que agora vinha claramente à memória.
— Por que você partiu?
— Por que só ficaria se você realmente me sentisse. Agora que você me encontrou, eu posso voltar.
E voltaram para o aconchego do leito, de mãos dadas, na manhã fria daquele domingo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Falta, desejo, vida

Ontem, numa conversa ao telefone, me dei conta da importância da falta. Não estou falando aqui de saudades, ou seja, da falta de alguém, ou da falta do básico da vida. Estou falando da falta que nos move, aquela que produz o desejo de algo, desejo esse que nos mantém vivos. Ter falta é essencial para viver, porque quando ela acaba, quando a satisfação é completa, corremos o risco de cair em depressão ou buscar satisfação em coisas não muito boas, como vícios altamente destrutivos. Ter falta é o móbile do desejo, de produção do desejo. E não falo aqui de desejo sexual, mas de desejo de vida, que passa, sim, pelo sexo, mas que vai muito além dele. É desejo de estar vivo, de ser inteiro. Ter falta é viver a incompletude e saber, mesmo sem o saber de fato, que temos de estar sempre na busca. É aquele vazio interno que num piscar de olhos se transforma em criatividade: um filho, um novo amor, um novo trabalho, uma bela viagem, um processo de autoconhecimento... Não passa pelo consumismo. Este, ao contrário, engole a falta e dá a sensação momentânea de saciedade, fazendo-nos perder o contato com nossa sensação mais básica. A falta produz vida, produz calor. A falta nos faz criar um caminho novo para uma vida que tende a ser morna, caso o deixemos. Por isso é preciso que produzamos todo o tempo o desejo que vem da falta. Mas esse desejo não pode ser destrutivo; ao contrário, deve ser produtivo. É ele que nos move.
Em suma, é isto: sem falta não há desejo, e aí não há vida. A falta é necessária. Por isso, quando sentir seu vazio, aquele buraco que o preenche e causa desconforto, não tente preenchê-lo. Observe-o apenas e veja o que ele lhe traz. Entregue-se à criatividade que vem dessa falta e movimente sua vida. Porque não há espaço para o novo no que está completamente cheio.
Esta tirinha resume bem o que quero dizer. Eu a adoro:


Eu também deixo o meu buraco vazio para que ele crie com o vento. E você? O que faz com o seu?

terça-feira, 15 de outubro de 2013

E foi-se...


Vivia na janela a suspirar, vendo o sol nascer, a chuva cair, o vento ventar, a lua surgir. Nada parecia ser possível de viver a não ser aquele recinto que a preenchia da abertura da janela para dentro. Até que um vento forte soprou, morno e convidativo, e trouxe consigo uma folha amarela a rodopiar. Foi o sinal de que precisava: subiu no parapeito da janela e, juntando-se à folha colorida, ventou para longe dali e nunca mais voltou.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Lágrimas e luz

Naquele dia, ela chorava. Não um choro forte e abundante, mas lágrimas silenciosas que lhe desciam a face e iam se acomodar nas dobras do pescoço. Lágrimas que desciam quentes e que logo perdiam o calor em contato com o ar, e talvez com seu coração machucado. Estava cansada. Cansada dos tropeços nos caminhos, das idas e vindas, das curvas erradas que fazia. Queria desistir. Mas como? Não havia opção. A vida lhe havia sido dada sem que tivesse pedido, mas não podia ser deixada para trás sem um grande ônus: o de perder as coisas boas que ela trazia.
Mas ela chorava mesmo assim. Pelos amigos que haviam partido, pelos amores não vividos, ou vividos pela metade, pelos sonhos desfeitos, pelos cortes profundos na alma que poucos, muito poucos, enxergavam. Porque seu sorriso era sempre radiante, luminoso. E ela só se permitia chorar em frente ao espelho. O único outro que conhecia sua dor tão profunda era ela mesma.
Mas desta vez ela chorava ao ar livre. Cansada do seu espelho, que só refletia o que ela já conhecia, foi para o meio das árvores, escolheu uma e sentou-se recostada ao seu tronco. E chorou. Feito criança. Ou feito adulto, cujo choro guarda seiva muito mais encorpada que a de uma criança, pois alimentada pelas agruras da vida.
E foi assim, chorando os amigos, os amores, os caminhos errados, a vida cansativa e permanente, que as lágrimas foram diminuindo, tanto em quantidade como em espessura. Foram se tornando pouco a pouco pequenos fachos quase sem sabor, até que viraram fachos de luz. E ela então passou a chorar luminosidade. Seu rosto ficou claro como o sol, e como o sol se aqueceu, e então o frio da alma foi substituído pelo calor da vida. Tudo o que havia de dor, de pesadume, de tristeza e de mágoa se transmutou em luz, alegria e paz.
Sozinha, sem seu espelho, somente em contato com o universo, ela renascia.

Gisele



Um dia, no seu sobrevoo diurno, ela viu a grande fresta da janela e entrou. Estava cansada de voar por entre os prédios, e de repente aquele ambiente com flores lhe chamou a atenção. Além disso, o sol queimava suas asas, que eram especiais: albinas. Como era especial sua vida: alguns meses apenas, alguns meses para, livre do casulo aprisionador, voar pelos céus e descobrir a beleza da natureza.
Mas ela era uma borboleta da cidade. Não havia conhecido os verdes campos, as flores cheirosas e belas, o sol quentinho amenizado pela brisa fresca. Havia nascido numa fresta de muro de um prédio antigo, em que seu casulo ficara preso o tempo necessário para que ela criasse asas e voasse. Suas asas que deveriam ser coloridas, mas que nasceram sem cor. E por isso ela era ainda mais bela. Mas não sabia disso. Somente os que a olhavam percebiam sua beleza diferente. Como sempre acontece com os seres especiais, que acabam desabrochando sob o olhar de outros seres especiais.
E assim foi com esse serzinho voador, que passou a ser conhecido como Gisele enquanto, sem o saber, era observado pelas donas da casa, que gentilmente cederam suas flores para que a visitante se sentisse mais bem recebida. Só que o inesperado, como sempre, aconteceu. Gisele não estava procurando conhecer o ambiente; ela estava procurando um lugar para repousar. Repousar seu sono eterno de borboleta. E assim foi. Em seu pouso delicado, deitou-se sobre o lírio e ali ficou, sem se mexer. Adormeceu para sempre, deixando no ar o perfume doce e especial de seu matiz diferente, fazendo como a bailarina do balé de mesmo nome: sendo delicada até o último momento de sua vida.
Gisele, então, morreu no meio das folhas do lírio. E deixou na casa que recebeu sua visita a forte sensação de transformação que todas as borboletas trazem. Com um quê a mais: uma transformação para o diferente, como suas asas albinas. Gisele não sabia, mas o que ela veio fazer nessa casa foi dar um presente a suas donas. Ela as abençoou.

domingo, 13 de outubro de 2013

O rio

Foto tirada em 7 de outubro de 2013 no castelo de Chenonceau, no Vale do Loire, França.

Ela caminhava há horas, quando encontrou um rio. Cansada que estava, sentou-se à margem e ficou a olhar as águas que passavam, majestosas, seguindo seu curso predeterminado sabe por que força. Até que o vento veio em seu encontro. Como sempre acontecia, sussurrou palavras de boas-vindas e lhe perguntou:
— Mas o que faz sozinha aqui, nesse lugar tão longe?
— Busco paz ao meu coração.
— E o rio lhe passa isso?
— Ele me diz que as coisas passam, mesmo quando achamos que não. Me diz que nada é igual, como não são suas águas. Me diz que tudo tem um chão, como o fundo de seu leito, mesmo que a profundidade nos pareça tão grande que o abismo não acaba nunca.
— Muito bem, moça, você está amadurecendo. Mas há uma coisa de que nunca deve esquecer.
— O quê?
— O rio tem o tempo para passar. Suas águas correm no tempo delas. Ele não pode ser apressado, porque corre sozinho. E assim também é com os acontecimentos de sua vida. Tudo tem o tempo certo para acontecer. Por mais que não pareça, as coisas se desencadeiam de maneira perfeita. Com uma ressalva: desde que você esteja atenta ao movimento das ondas de sua própria vida.
—  Como assim?
— Sua vida é única, moça. Os acontecimentos, as pessoas, os fatos, as dores, as alegrias — tudo isso é único para cada um. Não se mire nos outros, nunca. Porque, ao fazer isso, você perderá o correr de seu próprio rio. E só você pode saber para onde ele vai.
E ela ficou ali, a mirar as águas, a pensar nos medos que tinha do que viria e do que não viria. Mas depois se lembrou que nada podia fazer quanto a isso, a não ser uma coisa: cuidar do fluxo do rio neste momento. Ele determinaria o fluxo futuro.
E assim enterrou fundo seus pés na lama molhada do leito fluvial. Sentiu a terra gelada e, mais do que nunca, sentiu a vida que corria em suas veias. Assim como no rio.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Paris

Foto tirada no Jardim das Tulherias na tarde de 3 de outubro de 2013.

Há nove anos, quando estive em Paris pela primeira vez, não imaginava que um dia iria conhecer esta cidade. E de repente me vi aqui. Agora, estou eu novamente a imaginar como pude ficar longe tanto tempo. Na verdade, não achei que fosse demorar a voltar, mas chegou um momento em que achei que não voltaria mais. Paris é assim: como uma paixão que nos toma sem que percebamos, ela nos marca para o resto de nossa existência. Durante muito tempo sentimos seu cheiro, seu clima, sua vida. Durante muito tempo, como aquele ou aquela a quem um dia amamos, desejamos sentir novamente seu corpo, que são suas ruas, seu hálito, que é sua brisa, suas mãos, que são sua gente, sua língua, que está em cada sabor, em cada vinho. A diferença é que as paixões, se não se transformam em amor, costumam acabar e virar doces lembranças. Paris, não. Paris fica para sempre. Como o grande amor que deveria ter sido, mas não foi. Aquele para o qual desejamos voltar.
Paris: seu imaginário já nasce conosco. Como nossa vida.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Descompasso

Um dia, quando ela menos esperava, ele apareceu. E lhe cobriu de poesia. Era uma poesia para cada dia, e uma para cada hora de cada dia. Também era uma para cada estado de espírito que ele lhe adivinhava. Nunca havia se sentido tão acarinhada. Mas ela queria mais, e então lhe pediu gestos, além da poesia.
Ele então lhe mandou flores. Todos os dias. Um tipo para cada dia, escolhido de acordo com a estação do ano. Ela amava o perfume das flores, amava suas cores, sua delicadeza. Nunca havia se sentido tão importante, afinal receber flores é uma das grandes manifestações de amor. Mas ela queria mais, e então lhe pediu presença, além das flores.
Ele então lhe mandou beijos. Nos dias seguintes, ela recebia beijos pelo ar, em recados escritos, cantados e falados. Amava esses beijos. Sentia o frisson que lhe subia pela espinha cada vez que imaginava a língua que vinha com eles, o gosto da boca, o calor dos lábios. Nunca havia se sentido tão desejada. Mas ela queria mais, e então lhe pediu que a beijasse, além de lhe mandar seus beijos pelo ar.
Ele não entendia. Não entendia como toda aquela atenção não era suficiente. Não entendia por que precisava haver mais. Ela tentava lhe explicar, por meio de gestos, pedidos, olhares, carinhos, que nada era tão importante quanto o encontro, não o que havia acontecido tão fortuitamente, mas o que deveria acontecer entre duas pessoas que se atraem e têm muito a dizer e a sentir.
Ele queria continuar lhe mandando poesias, e flores, e beijos pelo ar. Ela queria receber tudo isso de suas mãos. Ela queria suas mãos.
Ele queria sonhar com ela todas as noites, dormindo, acordado, ao amanhecer, nas primeiras horas da manhã. Ela queria transformar os sonhos em atos, queria acordar com ele, olhar seu rosto pela manhã, sentir a preguiça de dois corpos entrelaçados nas primeiras horas do dia.
Ele queria imaginar como seria quando estivessem juntos. Ela queria ir ao seu encontro.
Ele queria sonhar. Ela queria fazer.
E por causa do descompasso dos verbos, eles não se entendiam.
Ele se entristeceu. Não entendia por que ela queria mais. Ela se entristeceu. Não entendia por que ele queria menos.
Ele continuou a sonhar. A imaginar poesias, e flores, e beijos.
Ela o olhou, com lágimas nos olhos. Não podia viver somente de sonhos. Então partiu.

domingo, 22 de setembro de 2013

Da arte de escrever... cartas

Tenho tido muita vontade de escrever... cartas. Isso mesmo. Daquelas em papel fino, do qual mesmo cinco folhas não tornam um envelope cheio. Daquelas que são escritas numa tarde sonolenta de domingo, ou no momento obscuro da noite, em que a vontade de dizer algo não pode mais ser ignorada.
Acho que tenho vontade de escrever cartas porque elas levam um tempo. Tempo para ser escritas, para ser enviadas (e aí você pode realmente decidir se quer enviá-las ou não), para chegar ao destino. E aí tem mais aquele tempo de saber se o destinatário leu, gostou, e aí novamente o tempo de resposta.
Numa carta, dava para perceber a mudança da letra em um momento ou outro: a redondinha e bem escrita do início, quando ainda estamos começando, e a mais largada do fim, quando já estamos cansados e o punho começa a doer. Também é possível desenhar nas margens: coraçõezinhos, solzinhos, nuvenzinhas. E podemos perfumar o papel, caso queiramos que vá junto com nossa letra algo mais: o nosso cheiro.
Adoro os meios modernos de comunicação. Adoro receber e-mails, SMS de bons-dias, mensagens no WhatsApp, recados nas redes sociais... Mas a carta guardava algo de mais pessoal, porque guardava o tempo, o aconchego, a suspensão... tudo isso que é muito humano.
Há diversos filmes que falam sobre as relações por correspondência, amorosas ou não. Um deles é A casa do lago, em que um homem e uma mulher, separados no tempo de dois anos, conseguem se corresponder e se conhecer. Em uma das cenas, ela está sentada lhe escrevendo quando sabe da morte do pai dele. Pela impossibilidade do telefonema, o texto se transforma num carinho feito pela escrita, em que ela diz que gostaria de estar ali, com ele, e olhar o lago da casa que seu pai havia construído para sua mãe. Dá para sentir o abraço que se transforma num refúgio de segurança, dá para sentir o apoio, porque há calor.


A outra cena se passa em Orgulho e preconceito, em que a personagem principal está sentada junto à janela a escrever. Ela olha pelo vidro, respira, pega a pena e, com traços bem delineados e vagarosamente, começa a carta endereçada à irmã: "Dear Jane". Sente-se o tempo da escrita, do pensar, do respirar. Há carinho, pausa, há momento de reflexão. Tudo isso numa manhã preguiçosa, em que não há nada mais a fazer a não ser falar com quem se ama.


As cartas guardavam o inusitado, a espera da esperança, a ansiedade. Elas tinham vida, porque havia ali um pedacinho daquele que escrevera.
Quero voltar a escrever cartas. Não porque escrever e-mails seja ruim, mas porque preciso desse tempo da pausa da caneta sobre o papel, do cuidado em dizer algo, porque não há como apagar.
Quero voltar a escrever cartas, e talvez elas levem consigo desenhos nas margens e um suave perfume nas folhas. Para que se lembrem de mim.

sábado, 21 de setembro de 2013

Todos os pensamentos que querem se manifestar

Um dia, ela teve um sonho estranho. Caminhava por um corredor estreito, escuro, até que via um faixo de luz bem tênue iluminando uma porta entreaberta. Bem devagar, ela empurrava a porta e via um velho sentado a uma mesa a escrever. O mais interessante é que não havia pena, ou caneta, ou qualquer coisa que se use para esse fim. As letras saíam diretamente dos movimentos dos dedos sobre a folha de papel em branco. Manchavam o papel e, quando o espaço na folha acabava, como que por mágica as frases iniciais iam se apagando, como um fio puxado de um rolo que se desenrola até o fim.
Ela ficou olhando aquilo, intrigada. Até que resolveu perguntar:
— O que o senhor tanto escreve?
Sem levantar os olhos da folha para ao menos vê-la, ele respondeu:
— Todos os pensamentos que querem se manifestar.
— Mas... se eles se apagam em seguida, de que adianta?
— Por que não adiantaria? Quando eles saem para o papel, ganham vida, mesmo que não fiquem registrados. E aí já não me pertencem mais.
Ela não conseguia entender.
— Moça, preste atenção: nada nesta vida é certo. A única coisa que temos como certa são nossos desejos. Se os colocamos para fora, eles podem se realizar, ou não. O importante é os tirarmos de dentro da gente. Ver o que escrevo ser apagado me dá a confirmação de que nada é concreto e que tudo pode ser realizado, ou não. Me dá a certeza da volatilidade do tempo, do espaço, da própria vida. Me diz que nada pode ser apreendido, por isso é preciso deixar ir. Pois o que me é importante está aqui, no meu coração. Eu o revelo e ele volta para mim. É assim que funciona.
E ele voltou para seu trabalho interminável, enquanto ela pensava em quantos pensamentos e desejos precisava libertar.
Voltou pelo túnel, que agora não era mais tão escuro, pois seus olhos já tinham se acostumado. Assim como nos acostumamos à vida.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Jogue fora

Foto tirada em fevereiro de 2007 na Praia do Diogo em Fortaleza/CE.

Fazia tempo que ela não via o mar. Nem sentia a areia, ou o vento quente que embaralha os cabelos. Mas dessa vez a maresia, com seu cheiro agridoce, a chamava. E ela foi. Andou descalça sentindo o calor que subia naquele fim de tarde. A brisa aumentava aos poucos e o mar se tornava mais rugoso. Depois de um tempo se sentou, vendo aquele azul imenso ir e vir, no balanço tão característico das ondas. Até que do som do vento ela depreendeu outro, como uma voz sussurrante:
— Jogue nas águas.
Custou a entender o que dizia, até que retrucou:
— Jogar o quê?
— A espera.
— A espera?
E a voz continuava a responder:
— A espera. Aquela que alimenta mas que também destrói. Jogue nas águas. Jogue fora as expectativas.
— Mas... por quê?
— Para lhe dar leveza.
— Mas como se vive sem expectativas?
— Você vai continuar sentindo a espera, a ânsia. Mas, se jogá-las fora, vai apenas viver o que virá. Experimente.
E ela, sem ao menos pensar no que estava fazendo e no que estava lhe sendo pedido, retirou do peito toda aquela carga pesada e a lançou ao mar. No mesmo instante, aflorou-lhe o desejo, o que move, e ela pôde traçar suas metas e colocá-las em prática, porque agora só dependia dela mesma. Então ela caminhou de volta para o caminho que era seu, sem olhar para trás.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O Senhor dos Caminhos


E um dia ela encontrou o Senhor dos Caminhos. Há muito queria vê-lo, para confrontá-lo.
— Por que esses caminhos? — ela o interpelou.
Ele, com seus olhos de profundidade infinita, respondeu:
— Mas foi você quem os escolheu.
— Claro que não! Eles me foram dados sem que eu pedisse.
— Ah. Então você pensa assim... Já olhou para trás e viu suas escolhas prévias?
...
— Mas essas escolhas também me foram dadas sem que eu pedisse.
— Em algum momento você as pediu, moça. Nem que seja antes de vir para este mundo.
E ele se foi, arrastando seu manto cinza na terra vermelha do caminho. E ela ficou a pensar em como tomar as rédeas da própria vida e fazer as melhores escolhas para si mesma.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Como acontecem os verdadeiros encontros?


Um dia, ela perguntou ao travesseiro:
— Como acontecem os verdadeiros encontros?
Ele, com toda a sabedoria de quem escuta os pensamentos e sonhos e aprende com eles, anos a fio, respondeu:
— Quando eles deixam de ser uma necessidade e passam a ser uma fatalidade.
— E enquanto isso, o que fazemos, nós, que vivemos neste mundo solitário?
— Devem aprender a encontrar-se consigo mesmos.
E ela dormiu com um sorriso nos lábios pensando que esse encontro já havia acontecido há tempos.

domingo, 15 de setembro de 2013

Sobre o amor... simplesmente

Retomo o blog depois de mais de um ano sem escrever. Não porque não tivesse o que dizer, mas porque a vida fora deste espaço requereu atenção e cuidado. Mas hoje eu preciso falar. Preciso falar de amor. Não de amar ou de ser amado, mas do amor em si.
Há muitos anos, quando eu estava perdida, uma pessoa linda, iluminada, entrou em meu caminho. Esse homem, um senhor idoso, era um padre. Parapsicólogo e médium, o Padre Avril me escutou em uma época em que eu não sabia quem eu era, em que tudo era nebuloso, confuso e em que a luz no fim do túnel era nada mais do que uma coisa de que eu tinha ouvido falar. Entre muitas coisas que ele me disse, entre papéis que me deu, livros que me recomendou, nenhum deles religioso, devo ressaltar, ele me disse uma coisa que só foi se fortalecendo ao longo dos anos. Foi mais ou menos algo assim: "Sabe por que as pessoas sofrem por amor? Porque elas acham que, quando alguém vai embora, vai levar seu amor com elas. Só que o amor está sempre dentro de nós, para darmos a quem quisermos, para colocarmos o rosto de quem quisermos." Isso demorou muito para decantar, mas as mais sábias palavras sobre o amor vieram de um homem que não conhecia o amor carnal, mas que sabia amar como ninguém, pois deixava esse amor no ar, como um perfume delicado.
Hoje, ele já faleceu e deve ter virado um anjo, assim penso. E eu, na minha insignificância de ser reencarnado tentando desesperadamente evoluir, tenho estas palavras em meu coração: o amor é nosso para dar para quem quisermos. Quando alguém vai embora, não o leva consigo; o devolve, para que ele seja novamente ofertado.
Por isso, disponibilize o seu amor. Mas sobretudo não tema quando quem o recebeu quiser devolvê-lo. Você não o perdeu. Ele continua com você, para dá-lo a quem quiser.
Acho que deve ser assim que pessoas como Gandhi e Chico Xavier devem amar. Eu sou apenas Débora. Amo egoisticamente, mas já sei que o guardo dentro de mim. Para me encher de amor e espalhar um perfume pelo ar.
Com amor.