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sexta-feira, 22 de abril de 2022

Tempo, solidão, pandemia... vida que segue

Retomo o blog depois de muito tempo. Lá se vão quase sete anos de muita mudança, a maioria delas com resultados excelentes. Nenhuma sem algum tipo de dor. Porque renascer, refazer-se, esquecer, retomar seu eu, ser quem queria tornar-se não são coisas nada fáceis.

Passamos (e este verbo serve tanto para o passado quanto para o presente) por um período muito, muito difícil. Golpe político no país, ascensão da extrema direita corroborada pela população, com a maioria dos votos ou por abstenção, caos social e econômico, pandemia... Esta última algo já visto na história humana, mas só imaginado nos filmes sobre modos de vivenciar um apocalipse.

O que dizer desse tempo? Um tempo que corre e varre tudo, significa, faz mudar e amadurecer, mas que também mata, adoece, traz dor. Um tempo de colheita do que foi plantado, nem sempre com consciência dos resultados que viriam.

A pandemia trouxe um caos social ao mundo todo, mas também um caos interno. Mortes de entes queridos, incerteza quanto ao futuro, desavenças, medo, insegurança. Mas penso que a pior dificuldade foi lidar com algo inerente ao ser humano, cantado em prosa e verso, mas que, quando vivenciado, deixa de ser poético e estremece: a solidão. Não aquela de um casal que se separa, de alguém sem um parceiro há muito tempo, de famílias que quase não se veem, ou de amigos que moram longe. Falo aqui da solidão de ser nascido e encarnado e não se saber o motivo disso. A solidão de ser/estar humano e das benesses e dificuldades disso.

O caos no mundo recente exacerbou essa solidão inerente, que se vê, na maioria das vezes, escondida no dia a dia, nas relações distrativas, sejam elas familiares, de amigos ou de amores, nos afazeres mil. Muita gente, nesses tempos, foi obrigada a ressignificar a importância do trabalho, das tarefas, das trocas, das relações. Famílias se desentenderam, casais se separaram, os últimos muitas vezes com a justificativa de que o amor não sobreviveu à pandemia. Mas o que me pergunto é: havia mesmo amor? Ou o que se pensava como tal era apenas distração, tesão, tapa-buraco?

Ver-se, de repente, trancado em casa 24 horas por dia com alguém que não se conhece tão bem resulta no caos. E, não, não estou falando do parceiro ou parceira, mas de si mesmo. Dar-se conta de que divide o dia a dia, a cama, o sexo, o banheiro e a toalha de rosto com alguém muitas vezes mal escolhido é assustador. O que fazer, então? Separar-se e colocar a culpa na pandemia, afinal ela foi a causadora de tudo.

Mas não foi. A pandemia só colocou os espelhos. Mostrou o que estava escondido e cuidadosamente escamoteado pelo trabalho, pelos eventos, pelos compartilhamentos com mil curtidas e comentários nas redes sociais. As relações que pareciam tão bem nas fotos e declarações de amor, mas que, por falta de conhecimento de si próprio, naufraga ao primeiro sinal de dificuldade sem distrações. Claro, há pessoas que se juntaram nesses tempos. Essas terão de ver se sua relação sobreviverá à falta do caos pandêmico.

A dificuldade de lidar com a própria solidão é o motivo de tudo. Porque, como em geral se diz, nascemos e morremos sozinhos. O outro, os outros, todos entram na nossa vida para somar. Ou deveriam. Mas o que em geral se vê é um tapa-buraco generalizado, a ânsia de esconder o próprio buraco, a falta, aquela que massacra, mas que também é o mote do desejo (desejo no sentido de desejar, de criar, não somente o sexual). Se não formos seres desejantes, é impossível viver. E o desejo só pode aparecer pela falta. Quando, desesperadamente, tentamos tapar esse buraco da falta, o desejo acaba. E aqui também está incluído o sexual.

Assim, estar com o outro deveria ser uma soma, à qual aos poucos entram outros fatores, mudando o resultado final. Por isso o tempo é importante. E esse pode ser um minuto ou vários anos. O que é preciso é saber que não se deve abrir mão da sua solidão por ninguém ou por nada. Porque ela continua presente, mesmo que não pareça.

Fazer coisas a sós, ir ao cinema, ver um filme, ler um livro, passear por aí, fazer compras... tudo isso deve e precisa ser feito sozinho, de vez em quando, para que nós, como seres humanos, saibamos lidar conosco e não joguemos no outro toda a frustração de ser/estar humano. E todas essas coisas devem acontecer mesmo que tenhamos amigos, familiares, amores. Porque, ao fazermos isso, podemos lidar melhor com o caos externo, como é aquele gerado por uma pandemia — que ainda não terminou.

Então, se sua relação não sobreviveu à pandemia, ou ela já tinha acabado e vocês não tinham se dado conta disso, ou nem tinha começado como relação profunda, e, estando somente na superfície das coisas, foi engolida pelo caos. Não foi a pandemia que fez isso. Foi a morte do desejo, a necessidade de tapar um buraco com alguém por não saber ser/estar sozinho. Ela já nasceu programada para morrer, sua relação. Teria sobrevivido, sim, caso vocês soubessem lidar com a própria solidão. Porque, para estar a dois, ou a três, ou em grupo, é preciso saber ser só. E ser só não é triste. Ser só é fortaleza. O tempo e a solidão nos ensinam a dar nosso melhor ao outro, quando o encontramos. E dar nosso melhor significa não usar o outro como suporte emocional, porque nós nos bastamos, embora escolhamos nos dividir com alguém.

A vida é isso. Traz altos e baixos por acontecimentos externos e internos. Precisamos saber quem somos para não sermos engolidos por ambos.

Devo dizer, feliz ou infelizmente, que a pandemia foi boa para mim. Resolvi pendências, coloquei a cabeça em ordem, refiz planos, coloquei pessoas e coisas no lugar a que pertenciam. Embora o caos externo estivesse e ainda esteja aí, sei que minha calmaria veio dessa parte nossa tão presente e negligenciada, que é saber-se só, mesmo estando com alguém. E nada mais gratificante do que encontrar alguém que também guarda com cuidado esse lugar da solidão, dessa vez transformada em solitude. Porque essas pessoas, quando estão com você, fazem-no porque o querem, não porque precisam desesperadamente de uma distração. Porque elas são inteiras consigo mesmas, então podem também ser inteiras com o outro. Em tempos de sufocamento e felicidades de Facebook, essas pessoas são preciosas.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Almas aconchegantes

Pessoas com a alma aconchegante... Já conheceu alguma? Eu já. Algumas.

Pessoas que têm a alma aconchegante são como qualquer outra, como eu, como você. Você pode conhecê-las e não ver nada demais nelas. Pode até mesmo não gostar delas a princípio. Elas podem ser de todo tipo, não precisam ser zen, podem comer carne vermelha, beber álcool, gostar da noite, rir alto em lugares públicos ou ser calmas como uma andorinha. Você pode começar a conversar com elas e pensar que não têm nada demais. Mas as pessoas com esse tipo de alma têm um porém: suas almas puxam você para dentro delas, como num abraço apertado. Elas o envolvem, o mimam, como um edredom numa noite fria de inverno. Elas podem nem ser muito simpáticas de início, mas são presentes quando estão com você, olham-no nos olhos, prestam atenção ao que diz, sorriem de volta quando você sorri pra elas. E, de repente, não mais que de repente, tasc!, você está lá, envolvido por aquele morninho de gente que esquenta o ambiente em volta.

Essas pessoas passaram por problemas, como eu e você; podem ainda estar passando; têm dúvidas, medos, anseios, pesadelos, amores passados e desfeitos, esperanças. Mas elas têm uma calma interna que não tem nada a ver com fazer ioga ou abraçar uma árvore. Elas podem não ser bonitas, e na verdade em geral sua beleza vem mais desse algo que tento descrever do que de um padrão estabelecido, mas elas se iluminam, e a seus olhos vão ficando cada vez mais lindas. E você fica ali, paradinho, querendo sentir um pouquinho dessa irradiação, como quando se entra numa neblina e se deixa que ela o envolva. E, quando nos afastamos delas, lembramos da sensação.

Não se trata de paixão, ou tesão, ou amor o que essas pessoas nos inspiram. Embora esses sentimentos possam também estar presentes, pois são pessoas que encantam. Trata-se de um brilho que talvez cada um de nós tenha, mas que não conseguimos ainda expressar. Na verdade, essas pessoas olham o Outro e olham para o Outro, e isso vem de suas almas. Aconchegantes.

São seres únicos, sabe? São delicados, embora irascíveis e briguentos muitas vezes. São cuidadosos. Consigo mesmos, em primeiro lugar, pois sabem que não devem magoar quem cruza seu caminho, porque já foram muito magoados. Na verdade, são pessoas sofridas, que viveram muito, apesar de nem sempre serem maduras em idade. São muitas vezes uma flor de lótus em um mar de lama que tenta selvagemente sobreviver.

Pessoas com a alma aconchegante são o que todo ser humano deveria ser: abertas ao Outro e ao que há de melhor nele. Elas enxergam o pior, sim, mas conseguem ver além. Não pense que são religiosas por isso. Não! Podem até mesmo não ter crença nenhuma. Porque elas praticam o que Deus, ou o Cosmos, como prefiro chamar, pediu que fizéssemos: cuidar do próximo. E fazem isso sem perceber.

Elas não necessariamente fazem trabalhos de caridade, ou seguem uma causa. Podem simplesmente estar pelo mundo espalhando seu perfume. São simples, e por isso extremamente complexas.

Pessoas com a alma aconchegante podem sentar com você para tomar um café e ficar horas só ouvindo o que você tem a dizer. Ou num fim de semana ficar na cama debaixo de edredom só sentindo o calor do seu corpo meio adormecido, sem nada mais. Podem ligar um som alto e barulhento ou deixar o silêncio reinar. Elas vivem normalmente. Mas elas o abraçam. Com a alma. Com os olhos.

Sabe, tenho encontrado algumas dessas pessoas ultimamente no meu caminho. Elas às vezes se tornam grandes amigos, ou amores passageiros, ou simplesmente passam e me ajudam em algo e vão embora. Outras eu já encontrei há muito e reconheço agora. O que posso dizer é: o aconchego de suas almas tem tocado a minha alma sofrida e questionadora. E em alguns momentos eu penso que, quem sabe, não é esse o verdadeiro ser humano.

Que haja mais pessoas com a alma aconchegante em minha vida em 2016. É o que desejo. E depois, e depois. E desejo o mesmo a você, que me lê agora. Tendo a alma aconchegante ou não. Feliz 2016. :)

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O buraco de cada um

Há 11 anos, eu me preparava para fazer 30 anos. O estranho é que não sentia a tal crise dos 30 e forçava um desconforto que todo mundo vivia, menos eu. Para comemorar a balzaquiana clássica, ganhei um presente: fui selecionada para uma bolsa para tradutores no Collège des Traducteurs em Arles, França. Surpresa, emoção incomensurável, medo. Eu, que nunca havia saído do país, viajaria sozinha para a França, desceria em Paris, iria ao endereço do fomento à bolsa, sairia de lá com 1.500 euros na mão, pegaria um trem para Arles, na Provence, e de lá para várias cidades em volta, também um avião para Birmingham na Inglaterra partindo de Marseille, depois de volta, e de novo Paris... isso durante quase 40 dias. Sozinha. Sem smartphones, que não existiam na época, sem Facebook, que ainda estava engatinhando.
Lembro que a notícia da bolsa chegou em março como um supetão com a ordem de viajar ainda no mesmo ano. E fui de março a outubro vendo as coisas da viagem, comprando passagem, marcando hotel, sem parar pra pensar. Sim, sem pensar. Porque, se pensasse, não iria. Foi o que percebi ao descer no Charles de Gaulle, num dia frio de outono, e pensar que, se eu morresse ali, ninguém ia saber. Eu podia desaparecer, podia ser atropelada, assassinada, essas coisas que a gente pensa quando se vê sozinho em um lugar desconhecido. E eu estava a 10 mil quilômetros de casa.
Mas eu fui. Olhei para o meu medo, coloquei-lo de lado, mas à vista, para que eu pudesse vigiá-lo e não deixá-lo crescer, e fui. Recebo até hoje comentários de amigas do tipo "eu não teria ido", "como você teve coragem"... Eu fui. Eu disse adeus. Virei as costas, entrei no avião, com medo, com pavor, com meu francês remelento de anos sem prática (e de prática eu não tinha nada), mas fui. Afinal, não era meu sonho de infância conhecer a França? Como assim eu poderia deixar de vivê-lo por um medo bobo? Está certo que viajar era corriqueiro já. Mas não para mim. Que me sustentava sozinha ganhando um salário que não bancava as despesas da casa, que ralava 12 horas por dia e mais 24 no fim de semana para me estabelecer. Eu não tinha escolha. Era imperativo. A vida me dizia: vá. E eu fiz o que ela me mandou fazer. Eu disse adeus à pessoa que eu era e abracei a que eu me tornaria. Mais segura, com boas lembranças e muitos, muitos desejos.
Já se vão 11 anos. Demorei a voltar, somente depois de nove anos. Porque investi em mim. Fiz mestrado, comprei apartamento, mudei de trabalho, cresci como profissional, aprendi a beber, e a gostar [muito] disso, descobri outros gostos, comecei a selecionar o que ouvir e com quem falar, abri meus horizontes, abracei muitos e bem-vindos amigos, fiquei fissurada em sapatos, parei de me culpar por gostar de me arrumar e gastar dinheiro com isso, conheci homens legais e muitos imprestáveis (a maioria, infelizmente), admiti que ser mãe não é meu caminho, mesmo adorando crianças, e descobri que o casamento nunca foi a coisa mais importante na minha vida, mas algo imposto por uma sociedade hipócrita e machista, que ainda reserva às mulheres seu papel in door.
Mas o que ficou dessa viagem foi mais do que isso: foi aprender a tomar o caminho desconhecido. Assim, estabeleci uma regra para mim: se a vida me apresenta dois caminhos, um que eu já conheço e outro desconhecido, e se eu fico muito em dúvida sobre qual tomar, eu tomo o segundo. Não sem pesar os prós e os contras, mas a primeira análise passa a ser: o caminho que conheço me trará experiências que eu conheço. Se eu tomar o novo, então, a possibilidade é que viva coisas diferentes, não é? É um risco. Pode ser doloroso, pode haver tombos, mas, olha, é revelador. Revelador da pessoa que você é e da que você será no futuro.
Então, não tema acabar com aquele relacionamento que só o faz infeliz, porque você ama demais aquela pessoa. Mentira. Você não a ama. Você ama o fato de estar amando e se acomodou a isso. Porque, se fosse amor isso que acha que vive, não haveria infelicidade. Arrisque. Pegue seu amor e deixe-o disponível para alguém que realmente valha a pena e que o mereça. Porque o amor é seu para dar para quem quiser.
Se está infeliz no trabalho, pese todas as variáveis e procure outra coisa para fazer. Quem sabe em outra cidade? Com novos amigos, novo bairro, nova rotina?
Não tema sair de perto dos pais. Se eles o amam, vão querer que você ganhe o mundo. Se o querem grudado neles, são crianças que precisam crescer, e de repente é seu papel lhes ensinar isso. Porque, mesmo sendo cruel, a tendência é de que eles morram antes de você, e aí vai ficar aquele vazio do amor que se foi e da vida que não frutificou.
Abandone quem não quer saber da sua companhia. Se a pessoa quer ir, deixe que vá. Mas cuidado para não colocar outra no lugar para preencher o buraco que ela deixou. Isso vale para o amor, mas também para a amizade.
E, sobretudo, olhe para o seu "buraco". É uma frase estranha, mas nosso buraco (o furo da psicanálise, e me corrijam se eu estiver errada) é nossa falta. Sem ela, nós não desejamos, não buscamos. A falta vai continuar existindo. Por isso, conviva com ela. É mentira a crença atual de que podemos ter tudo. Não, não podemos. Porque, quando temos tudo, quando estamos plenos, é a morte.
Crie. Seu buraco é para isso. Ele vai lhe mostrar o caminho.
O meu está aqui. Eu olho para ele todos os dias, para não esquecer da sua existência.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Desencontros?

— Por que despertar um sentimento tão incrível de completude, troca e cumplicidade se no fim é sempre o habitual? Aquela constatação de que tudo era efêmero? — perguntava a moça ao velho senhor, que escutava atento seus lamentos.
— Ora, não há resposta mais simples, menina. Porque, mesmo que não tenha havido uma estrada mais longa, o objetivo não era esse.
— E qual poderia ser, então? Provocar sofrimento?
— Não. Provocar a incrível sensação de que é possível amar de novo. Permita-se.
Ela então teve a sensação de uma quase epifania. Será?

domingo, 5 de outubro de 2014

O caminho

Ela havia percorrido grandes e pequenas estradas e em todas elas encontrara pessoas. Algumas mais outras menos importantes. Todas haviam deixado sua marca. Em geral, profunda e dolorida. Ela não sabia o que era importante no amor. No início, achava que uma grande admiração seria perfeito. Alguém que a amasse tanto, que a admirasse tanto, que a fizesse ficar para sempre com ele. Contudo, isso se mostrou uma gaiola de ouro. E ela se despediu. Não aguentava uma prisão, por mais bela que fosse. Mais adiante, pensou que inteligência e belas palavras poderiam ser o prenúncio de uma relação prazerosa. Sim, isso era importante. Mas de que valiam belas palavras se não havia belas atitudes para acompanhá-las? Ela nunca correra o risco de se encantar por belos carros, ou casas, belas figuras, mas sabia de pessoas para quem isso era importante. Não entendia por quê, mas agradecia por ser esse um fator ruim a menos em sua caminhada. Não era superficial. Conseguia entender que um encontro a dois era muito mais do que isso. E era agradecida por conseguir ser madura a esse ponto. Mas ainda não descobrira qual era o ponto certo. Para ela. Assim, continuava. Entre uma decepção e outra, rasgando e costurando o coração, chorando nas madrugadas algumas várias solidões acompanhadas, ela descobria que estar simplesmente com alguém não bastava. Era preciso estar pleno com alguém. Mas como atingir a plenitude quando para o outro isso não queria dizer nada? Ela percebia o medo de se envolver em seus parceiros e pensava que talvez esse medo deles fosse um reflexo do próprio medo que sentia. De ser engolida, de se perder, de ser perdida. De amar tanto alguém que fosse preciso se despir de si mesma para estar com esse alguém. Não era infundado esse medo. Isso já acontecera antes. O que, no entanto, acontecera é que ela, com o tempo. foi se dando conta de que isso não era amor. Apesar de todos verem assim e usarem a palavra amor para designar esse estado, ele era mais pathos que amor. Porque para amar não é necessário se perder. É preciso, sim, ceder, mas nunca se perder. E ela continuava em sua busca.
Com o tempo, para ela se tornou inadmissível abrir mão de si mesma por causa de outro alguém. Uma situação difícil. Porque as pessoas, acostumadas que estão a ter do outro tudo o que ele pode dar, invadem o parceiro, se mesclam a ele de tal forma que acabam com sua individualidade, a própria e a do outro. São as cenas de ciúme, a falta de incentivo nos projetos, a falta de escuta. E ela percebeu, aos poucos, que queria encontrar alguém que soubesse ouvir. Não ouvi-la, mas ouvir a si mesmo. Porque, quando alguém ouve seus próprios desejos, sabe o quanto eles são preciosos na própria vida e não tenta anular os desejos do outro.
Só que isso era quase impossível de achar. Por isso, ela seguiu sozinha. Às vezes acompanhada, mas sempre sozinha. Sabia que aquelas relações eram passageiras, que a paixão tinha data para terminar, que tudo aquilo não era nem a terça parte do que uma relação podia lhe dar. Ela sabia que a célebre frase "é impossível ser feliz sozinho" era uma mentira deslavada. Sabia que, para estar com o outro, era imprescindível mergulhar na própria solidão. Ela dizia isso a quem entrava em sua vida, mas sempre era mal interpretada. Acostumou-se a ser desacreditada.
O que ela queria era estar bem. Estar bem consigo. Não admitia que alguém lhe pedisse para ser menos do que podia ser, para dar menos do que podia dar. E exigia o mesmo em troca. Era pesado. Para ela. Para o outro. Mas como ser de outra forma?
Contudo, um dia ela encontrou alguém. Depois de muito esperar, de muito chorar, de não mais acreditar, descobriu que a pessoa que a completava era aquela para quem ela não precisava fingir ser quem não era. Era alguém que via seus defeitos, não gostava deles, mas entendia que faziam parte de um todo. E ela sentia o mesmo. Não foi uma grande paixão. Foi algo tranquilo, estranho, como se já tivesse acontecido antes. Ela não alardeou. Não divulgou. Simplesmente viveu. Alguns pensam que ela continua sozinha; outros, que está mais ou menos feliz, afinal não propaga a própria felicidade. Mas ela sabe o que sente. Sente um calor no peito e na alma. E ela vai vivendo.
Eles vão vivendo. Sozinhos em suas singularidades. Juntos em seu amor cúmplice.

domingo, 11 de maio de 2014

Um Feliz Dia das Mães


Eu tenho acompanhado, sempre que posso, o programa Santa Ajuda, do GNT, já que adoro dicas de decoração e organização. Então, esta semana tive uma boa surpresa: em plena semana do Dia das Mães, o programa traz a organização de um quarto de bebê para um casal que espera o primeiro filho. Nada demais se esse casal não fosse composto por duas mães. Foi muito interessante observar a naturalidade do discurso de uma nova configuração familiar, coisa que até dez anos — sim, somente dez anos — seria impossível. Mas por que falo disso hoje? Porque, em meio a mil postagens fofas no Facebook de homenagem às mães, me pergunto se as pessoas realmente conseguem perceber o que é a maternidade. Sim, as mães são dos seres mais importantes deste mundo, porque sem elas não estaríamos aqui. Elas geram, cuidam, alimentam, protegem. Em sua maioria. Mas nem sempre. Porque há mães que são mães por acidente, por obrigação, por falta de escolha, por imposição social. E há aquelas que, apesar de amarem seus filhos, depois de tê-los e perceberem a tarefa hercúlea que empreenderam, se pudessem escolher novamente escolheriam não ser mães. Conheço algumas. E isso não é nenhum demérito. Porque mães não são supermulheres. São seres humanos, e como tal passíveis de erros, arrependimentos, mágoas, medos. Acima de tudo são mulheres que desde que o mundo é mundo sofrem a pesada imposição social de que é natural ser mãe, desejar ser mãe, sendo, na verdade, quase uma obrigação.
Há algum tempo, uma médica me disse que, com meu relógio biológico apitando, eu deveria pensar em ter filhos, pois poderia me arrepender de não tê-los depois. Ao que eu retruquei que quem garantiria que não me arrependeria de tê-los. Não satisfeita, me disse que eu poderia me arrepender quando, com 60 anos, me encontrasse sozinha. Fiquei escandalizada como, em plena década de quase 20 do século XXI, havia mulheres que colocavam seres no mundo para garantir sua não solidão. Que egoísmo é esse? Dei graças a Deus, depois de me recuperar da pressão absurda, por ser lúcida e não pensar assim.
Porque filhos são gente. Mães são gente. E pais são gente. Família pode ser o melhor lugar do mundo, como também pode ser o inferno na Terra. Somos seres humanos, e como tal podemos ser maravilhosos e cometer erros sem gravidade emocional absurda, mas também podemos estragar o psicológico de uma criança que está tentando se entender neste mundo de cão. Por falta de amor, muitas vezes não pela criança, mas por si mesmas, algumas mães não são boas mães, definitivamente. E na maior parte dos casos não têm culpa disso. Simplesmente repetem um padrão passado por gerações.
Quando comecei o post falando do programa sobre a maternidade do casal homossexual, quis centrá-lo no amor. Na maternidade como escolha, não como vocação. Como desejo, não como obrigação social ou biológica. O discurso sobre a constituição familiar básica com pai, mãe e filhos está sendo alterado aos poucos, dando lugar a uma nova configuração. Daqui a pouco tempo não será estranho vermos as várias configurações de família, o que mostra que o discurso constrói, sim, o social. Como foi mostrado exaustivamente por Michel Foucault com sua "arqueologia do saber": o discurso constrói o social, muda comportamentos, estabelece várias ações, muda conceitos. Isso tudo sem nos darmos conta disso. É assim que o amor homossexual está começando a ser visto com os olhos com que devem ser vistos: com olhos de amor. E espero que aos poucos isso aconteça também com o olhar para as mães. Que as retiremos do pedestal em que sempre foram colocadas em toda a existência da humanidade e que as tragamos para o lugar que devem ocupar: como mais uma escolha feminina, como qualquer outra: a de trabalhar ou não, pintar o cabelo ou não, casar-se ou não, ser mãe ou não. Porque ser mãe não é intrínseco ao ser. É uma responsabilidade que deve ser assumida com consciência. Não porque se é mulher, porque o marido/companheiro quer, porque a sociedade exige, porque se tem medo de ficar sozinha. Você trará um filho ao mundo e deverá dar conta a esse mundo do que fez dele. Porque seu filho crescerá e fará as próprias escolhas, mas só estará aqui para fazê-las porque você assim o permitiu.
Então, neste Dia das Mães desejo a todas as mulheres que empreenderam esse caminho que o façam da melhor maneira possível, sem esquecer que são humanas. Aos filhos das mães, que as vejam como seres passíveis de erros e que saibam se afastar de suas mães caso elas sejam nocivas a si mesmos, e amá-las e agradecer-lhes caso elas sejam amorosas e companheiras. E desejo a todas as mulheres que estão na dúvida se trilham ou não esse caminho que o façam com consciência. Sobretudo isto: pensem, em primeiro lugar, em si mesmas. Porque ser mãe é abrir mão de si mesma em muitos pontos, nem que seja emprestando seu corpo para gerar outro ser. Essa pode ser a maior aventura da sua vida, mas também pode ser a pior, vindo com culpa e arrependimento. Porque um filho, uma vez estando no mundo, vai lhe cobrar o papel de mãe, e você precisa estar consciente desse papel. Então, um conselho: se existe uma dúvida grande sobre ele, não o aceite. Porque você, mulher, pode ser ou não mãe em nosso tempo atual, mas será sempre uma mulher. E mulher tem a maternidade dentro de si, que pode ser canalizada para um sobrinho, um trabalho com crianças, uma ajuda a terceiros. Não é egoísmo. Egoísmo é colocar filho no mundo para aplacar sua solidão. Lembre-se: os filhos não são seus, são do mundo, e para isso devem ser criados.
Um Feliz Dia das Mães a todas que o são. E às que escolheram não serem, um Feliz Dia das Mães às suas mães. E parabéns pela sua coragem de dizer não.

domingo, 13 de abril de 2014

Quando o coração desincha

Depois de mais um dia de tristeza infinda, começava a achar que as lágrimas que derramava estavam chegando ao fim. Não conseguia entender como tinha forças para chorar tanto o choro de seu coração partido, como ainda conseguia sentir o gosto já tão conhecido das lágrimas salgadas. Lá fora, caía uma chuva fina que vinha acompanhada de um frio cortante, que ela nem conseguia aproveitar como gostava de fazer — com um bom vinho, ou um capuccino —, pois tudo isso lembrava aquele que partira há algum tempo e que a deixara tão machucada.
E assim iam-se os dias. Ainda chorava, ainda soluçava, mas sentia que aos poucos a ferida ia se fechando. Deixaria uma cicatriz, como cada marca feita no corpo, seja ela feita ou na pele, ou dentro dele, mas com o tempo esqueceria a dor. Assim pensava. Assim desejava.
Pensando e sentindo assim, foi se dando conta de que o normal era mesmo este: que o coração se desvanecesse em lágrimas. É que, quando se amava, ele inchava, de amor, de alegria, de felicidade, de desejo. Contudo, se esse amor não perdurava por qualquer motivo, era preciso que diminuísse. Então, as lágrimas saíam pelos olhos e levavam junto todos os sentimentos que o coração havia guardado consigo durante o tempo em que estivera amando, mesmo que esses sentimentos não tivessem sido correspondidos. Os dela haviam sido, pelo menos pensava que sim, mas seu fim tão brusco trouxera uma dor inominável. Ela continuava seu dia a dia, no entanto.
Dia após dia, assim, esperando o coração desinchar, ela ia se recuperando. As lágrimas iam ficando menos frequentes, a dor ia passando, e seu coração, que antes ocupava um lugar enorme no peito, agora voltava ao tamanho normal.
Até o dia em que ele recebesse de novo a carga de sentimentos em virtude de outro amor. Correspondido ou não.