Total de visualizações de página

sábado, 24 de dezembro de 2011

Privado x Público

Estamos vivendo mesmo uma época singular. Para além das relações líquidas analisadas por Bauman ou da sociedade de controle que outros discutem, o que vemos é uma verdadeira quebra da dicotomia público/privado. Não sei se as pessoas nunca realmente souberam como usar o espaço público ou se essa falta de respeito pelo outro está sobressaindo demais em função das novas tecnologias, só sei que é assustador precisarmos o tempo todo gritar que nosso espaço está sendo invadido.
Há uns oito anos mais ou menos, no início do boom dos celulares e, claro, da adaptação a eles, fui à Sala Cecília Meireles assistir a um concerto do grupo brasileiro Uakti (http://www.uakti.com.br/), um grupo de percussão espetacular, com raras apresentações. Uma amiga que trabalhava na Sala na época havia conseguido dois ingressos para mim. Eu estava ansiosa. Pois é, mas tudo seria perfeito se não fosse um sem-noção sentado atrás de mim. O celular tocou a primeira vez; ele atendeu. Tocou a segunda; ele atendeu. Eu de levemente rosada já estava ficando vermelha, de raiva. Na terceira, não aguentei, virei para trás e disse que ele não podia atender o celular, que aquela era uma sala de espetáculo. Detalhe: eu estava sentada na segunda fila; o energúmeno, na terceira; ou seja estávamos perto do palco! Mas a resposta do sem-noção, como se não fosse nada, era que a mãe estava no hospital e que ele precisava atender às ligações, ao que eu respondi que se a mãe dele estava no hospital ele não deveria estar ali!!! Foi a primeira experiência dos tempos que se tornariam duros e complicados. Tempos esses que estamos vivendo agora.
Hoje, véspera de Natal, tive a sorte de chegar à rodoviária sem passagem comprada e embarcar meia hora depois. Seria o prenúncio de uma viagem tranquila se, minutos depois de o ônibus partir, eu não começasse a ouvir em alto e bom som o que parecia ser uma televisão ligada. O som de uma televisão de celular. Aguentei meia hora. Achando que eram as duas meninas à minha frente, pois o som estava próximo, cometi a gafe de me dirigir a elas; mas era a anta da poltrona da frente. Mais uma vez, provavelmente vermelha de raiva, tive de fazer valer o meu direito, que deveria ser respeitado sem se precisar exigir isso. Voltei para dormir.
Só que a vida nem sempre é fácil, caríssimos, e meu carma de ter de me tornar uma pessoa "chata" e "implicante" não terminou aí. Quase no fim da viagem, um "cidadão" - se posso aplicar esta palavra a esse tipo de gente - resolve ouvir música evangélica no celular! Ou melhor, resolve ouvir e compartilhar. Como estava chegando, resolvi que poderia aguentar aquilo, mas falei com a pessoa a meu lado, que compartilhava de todo o drama, que as pessoas estavam perdendo a noção. Falei alto, para ver se ele ouvia.  E deve ter ouvido, porque ele se virou para mim com um amplo sorriso, posso dizer que bem bonito, como se eu estivesse elogiando, o que me faz pensar que além de sem-noções essas pessoas não diferenciam mais uma crítica construtiva de uma altamente destrutiva como foi a minha. Foi a minha deixa. Perguntei-lhe se ele não tinha um fone, porque o gosto musical dele não era o de todo mundo. Ele me retrucou com mil desculpas, inclusive quando desci do ônibus. Não era má gente. Só é do tipo de pessoa que não percebe que não se trata do volume, ou do tipo de música, mas do direito de o outro não ser invadido por algo de que não deseja compartilhar naquele momento.
Fico pensando que professores de Sociologia estão sendo admitidos em massa nas escolas. Esses professores - sofredores, ouso dizer - vão precisar começar seu ensino pelo mais básico: a diferença entre público e privado. Essa geração nova, criada com pais tão invasivos, simplesmente não vai saber que o espaço público, por ser público, não comporta ser utilizado por todos como se queira. A liberdade de ação, até certo ponto, claro, está no privado. Imagina se cada um quiser ouvir um tipo de som, ou usar a rua como se queira. Que está acontecendo? É a novidade dos eletrônicos que está deixando nosso povo, tão alijado do progresso durante tanto tempo, sem noção? Ou é a falta de educação, no sentido amplo da palavra, que impera? Sinceramente, não sei. O homem da Sala Cecília Meireles não era do "povo", não era desprovido de "educação formal", mas não conseguia enxergar um palmo na frente do próprio nariz. O rapaz do ônibus tinha um sorriso franco, aberto, não sabia, mesmo, o que estava fazendo. Mas isso me preocupa muito. Essa invasão do espaço do outro está além do uso indevido de celulares. Está na apropriação indevida do que não é seu, nos desvios de verba. Está no mau uso das redes sociais, na autoexposição a um nível insuportável.
Não sei se isso acontece só por aqui ou se está espalhado pelo mundo. Só sei que é aqui que eu moro, e é por isso que me incomodo tanto com o modo como as coisas estão por aqui.
A única coisa que queria é que as pessoas olhassem um pouquinho além dos próprios narizes e umbigos. Talvez seja a criação em casa, talvez... Aí, neste caso, só nos resta chorar, porque crianças são criadas em famílias, e se o que está vindo dessas famílias é isso, podemos esperar um futuro de convivência no espaço público bem deteriorada.
E assim começa meu Natal e termina meu ano: comigo lutando pelo meu espaço. Ainda bem que sou atenta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário