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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Contra o esvaziamento da alma

Começo o primeiro post de 2012 com o vídeo acima, em que um Chico Buarque com seus olhos verdes e um Caetano Veloso, novinhos, narram as lamúrias de desejos controversos na música "O quereres". O vídeo é antigo, a filmagem é desgastada, mas a música é de uma riqueza de vocabulário absurda. Aí, penso nos "versos" de um Michel Teló: "Ai, se eu te pego, ai, ai, delícia..." Ambas falam da mesma coisa: de desejo, de tesão, de vontade. Então, qual é a diferença?
Não vou entrar na discussão purista da qualidade das músicas, até porque não há o que se discutir. Final de semana passado mesmo, em um bar no sábado à noite no Recreio, uma banda maravilhosa, em todos os sentidos, surpreendentemente com um vocalista afinadíssimo, coisa rara muitas vezes nos bares do Rio, animava a plateia com hits dos anos 80, indo de Cazuza a Erasure, passando por Linking Park (uma grata surpresa pra mim!) e desaguando no que está na moda atualmente. É claro que rolou um Michel Teló. Além de qualquer coisa, a música funciona. Diverte, anima, apesar de ser repetitiva. Até aí, tudo bem. O problema não é você ouvir ou se divertir com Michel Teló. O problema, que ninguém parece entender, é alguém SÓ OUVIR Michel Teló ou algo do gênero. Fazendo um paralelo com a linguagem, é mais ou menos como alguém que não domina o registro culto da língua. Quem estudou Linguística sabe que o conceito de "erro" cai por terra e é relativizado. Não que se deva falar "erradamente", mas que, se a pessoa se comunica, se a linguagem que utiliza funciona no meio no qual está inserida, tudo bem. O problema é se ela só dominar esse registro. Quem domina a norma culta da fala (não estou nem tocando na norma culta da escrita) também domina, ou tem facilidade de aprender, os outros registros, mas infelizmente isso não acontece da forma inversa. Penso que é o mesmo caso para a música. Uma pessoa que não consegue ouvir a riqueza da música brasileira, e ouso dizer mundial, é limitada na transição pelas outras linguagens musicais. Porque música também é hábito. Por que é chato para muitas pessoas ouvir música clássica? Porque é difícil. Porque é sofisticado. Porque é uma "linguagem" ao qual não se está acostumado. No entanto, inúmeros estudos já provaram que a música clássica deixa as pessoas mais inteligentes, exatamente pela sua riqueza melódica, sem falar nos benefícios emocionais. Estou usando o clássico como exemplo, mas isso também está presente na bossa-nova, no samba de raiz, no forró tradicional, no tango argentino, no maravilhoso e dificílimo flamenco, nas dissonâncias da música árabe. Contudo, para apreciá-las, é preciso treino. Treino auditivo. Como acontece com a língua. (Aliás, sabemos que quem tem ouvido musical tem mais facilidade para aprender uma língua estrangeira.)
Eu não tive uma infância rica em bens materiais. Longe disso. Mas ela foi rica em música e em livros. As paredes da casa dos meus pais, ainda adornadas de estantes repletas, guardam tesouros da literatura mundial. Outros cantos da casa guardam os da música do mundo. Cresci ouvindo a nata da música brasileira do século XX, como Lupicínio Rodrigues, Cartola, misturados a uma boa moda de viola (para quem não sabe, a precursora da boa música sertaneja que deu na pobreza que ouvimos por aí e que chamam de sertanejo), aos inúmeros LPs, e depois CDs, de música clássica, aos tangos argentinos, aos grandes cantores bregas, que têm seu lugar, como Julio Iglesias, às grandes cantoras de jazz norte-americanas. É claro, meu pai não gostava de rock. Mas isso eu tinha na escola, na casa das amigas. Meus pais me deram a oportunidade de apreciar sutilezas sonoras que faz com que eu consiga ouvir de tudo, ou quase tudo. Meu ecletismo musical se deve a essa educação e riqueza de sons, o que, infelizmente, não está presente nas gerações atuais. E talvez não estivesse nem presente na minha, só que a qualidade do que era tocado era um pouco melhor.
Não estou escrevendo este texto para recriminar o que ouvimos por aí. Já há muitas pessoas, com razão ou não, fazendo isso. Só tenho pena da limitação que vejo. Porque ouvir boa música, bem como ler boa literatura, apreciar bons sabores e saber beber uma boa bebida, seja qual for, faz parte da riqueza do humano. Poder transitar de um extremo a outro é maravilhoso. Mas o que dizer de quem só conhece um ponto dessa linha reta?
Há alguns anos, disse a uma pessoa que as grandes criações não mais aconteceriam por falta de contemplação. O tempo para contemplação acabou, engolido por essa vida insana que levamos. Hoje, acrescento um dado: precisamos ser ricos por dentro, ter múltiplas sensações, ouvir, ler coisas que sejam sofisticadas e difíceis para que nosso cérebro não se estagne na mediocridade. Não há nada demais em sermos medíocres quando queremos. O problema é quando somos medíocres todo o tempo porque não temos outra escolha. Essa é a grande tristeza.

4 comentários:

  1. Linda e profunda reflexão, Débora! A conclusão, então, inquestionável!

    Beijos,

    Kyanja

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  2. Concordo, Débora. E nós ainda temos escolha, mas o que será desses que, diferente de você, eu ou nossos amigos, não saberão o que é poder escolher. Triste mesmo.

    Ah! Penso que é nas entrelinhas das palavras ditas que fica o silêncio. E, cá pra nós, nosso silêncio é repleto de palavras... ^^

    Parabéns pelo post e pelo blog, que ainda não conheço, mas volto outra hora.
    Beijo.

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    Respostas
    1. Rita, querida, vindo de você essas palavras só ganham mais força e significado. Tenho verdadeira admiração pela sua escrita e seus pensamentos; então, receber um comentário seu é um grande presente. :) Obrigada.

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